No julgamento do Recurso Especial (REsp) 2024250, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a possibilidade jurídica da concessão de autorização sanitária para o plantio, cultivo e comercialização do cânhamo industrial no Brasil. Embora seja uma variedade da Cannabis Sativa, o cânhamo industrial não possui efeitos psicoativos, devido ao seu baixo teor de Tetrahidrocanabinol (THC).
Já no âmbito legislativo interno, a Ministra Regina Helena Costa destacou que a Lei nº 11.343/2006 define como drogas as substâncias capazes de causar dependência, conceito que não se aplicaria ao cânhamo industrial, justamente por seu baixo nível de THC, o que afasta sua inclusão nas restrições previstas na legislação sobre entorpecentes.
Além disso, é importante ressaltar que cânhamo e maconha são variedades distintas da Cannabis Sativa, diferenciando-se pelo teor de THC presente em cada uma. Enquanto o cânhamo industrial possui até 0,3% de THC, a maconha pode conter entre 10% e 30% dessa substância. Diante desse critério, o STJ entendeu que o cânhamo industrial não se enquadra nas proibições da Lei de Drogas, nem em outros regulamentos, tornando possível seu cultivo em território nacional.
Entretanto, a autorização sanitária para o cultivo do cânhamo industrial por pessoas jurídicas deverá seguir as normas regulatórias que ainda serão editadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O prazo para a publicação dessas normas finaliza em maio de 2025.
Precedente qualificado e efeito vinculante
O REsp 2024250 reveste-se de especial importância, pois foi julgado sob a sistemática dos precedentes qualificados, conferindo-lhe efeito vinculante para casos semelhantes. Isso significa que a decisão do STJ deverá ser observada pelas instâncias inferiores, estabelecendo um marco jurídico na interpretação da Lei de Drogas quanto à legalidade do cultivo do cânhamo industrial no Brasil.
Impactos na indústria nacional e no acesso a medicamentos
A Ministra Regina Helena Costa, relatora do caso, ressaltou que estudos científicos indicam a eficácia dos derivados da Cannabis no tratamento de diversas doenças. Além disso, destacou que o alto custo desses produtos no Brasil se deve, em grande parte, à necessidade de importação, apesar das normativas vigentes que permitem sua entrada no país.
Atualmente, o Brasil autoriza o uso e a comercialização de medicamentos à base de Cannabis, mas proíbe a produção nacional dos insumos necessários para sua formulação. Essa restrição impacta negativamente o acesso dos pacientes ao tratamento, já que a dependência de importação encarece os medicamentos e dificulta sua aquisição por grande parte da população.
A ministra também enfatizou que cabe à Anvisa suprir a lacuna regulatória sobre o cultivo do cânhamo, revisando normas equivocadas que impuseram restrições indevidas, não previstas na Lei de Drogas. A ausência de regulamentação específica desfavorece o desenvolvimento da indústria nacional, ao impor barreiras que inviabilizam a produção interna de insumos essenciais para a formulação de medicamentos.
Teses fixadas no julgamento
As teses fixadas no julgamento foram as seguintes:
1 — Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;
2 — De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp), não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;
3 — À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária — Anvisa (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item I (cânhamo industrial — Hemp**), cujo teor de THC é inferior a 0,3%;**
4 — É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária — Anvisa e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão; e
5 — Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária — Anvisa e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.
Conclusão
A decisão do STJ abre um novo precedente para a regulamentação do cânhamo industrial no Brasil, permitindo a estruturação de uma cadeia produtiva que reduza os custos dos medicamentos à base de Cannabis e amplie o acesso ao tratamento para pacientes que necessitam dessas substâncias.
O desafio, agora, está na definição clara das normas regulatórias pela Anvisa e pelos órgãos competentes, garantindo segurança jurídica para a produção e comercialização do cânhamo industrial no país.